Como conheci o Botequim do Hugo

Era 1994 e eu estava participando desses encontros no MIS-SP, era uma coisa chamada Projeto Foto-de-Autor. Quinzenalmente nós sentávamos ao redor de uma mesa e mostrávamos o que vínhamos produzindo. Mas quando comecei eu não estava fazendo nada em especial, trazia cada semana uma coisa diferente, um experimento, uma tentativa. Resolvi então explorar um assunto e produzir uma série de imagens para poder aproveitar melhor essa oportunidade.

Do altos dos meus 19 anos, achei por bem explorar os botecos do meu bairro. Lentamente fui descobrindo um a um e levava as fotos para a reunião seguinte. Lá pelas tantas descobri o Botequim do Hugo ali na Rua Pedro Alvarenga, 1014.

Na época usava um papel Talbot que vinha do Uruguai, era 9x14cm e o acabamento era “seda”. Era usado pelos fotógrafos de jardim. Fiz cópias dos retratos como abaixo e levei lá de presente. Esse do Hugo aqui ainda estava lá em 2019.

Quantos amigos levei nesse lugar? Quantos jogos de Copa do Mundo assisti lá? Bah, nem dá para saber.

Em geral fotografava em Kodak Tri-X com objetivas 50mm f/1.4 ou 28mm f/2.8 na minha fiel Nikon FM2. Filme era puxado boa parte das vezes, para 1600 eu arriscaria dizer. Afinal eram os anos 90 e puxar era essencial nessas situações de luz.

Já falei antes do Projeto Foto-de-Autor, foi aqui nesse post.

Continuei morando ali perto e frequentando o botequim. O Hugo tinha o hábito de conversar com os carroceiros da região e fazer algumas trocas com eles. Aos poucos o Hugo juntou uma enorme coleção de slides 35mm que foram postos no lixo por diversos paulistanos e filtrados até chegar às mãos dele. De vez em quando, quando o bar não estava cheio demais, o Hugo puxada uma caixa e fazia uma projeção impromptu. Quando ele comprou uma TV nova para a Copa do Mundo, convenci ele a me emprestar os slides da últimas caixa, levei ao estúdio, fotografei uns 400 deles e montei um DVD para ele deixar rolando na TV.

Foto-de-autor

Em 1994 um amigo me apresentou a uma coisa que mudou minha vida: o Projeto Foto de Autor no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, ou MIS-SP. Hoje em dia, dando uma busca no oráculo a gente encontra um monte de currículos de fotógrafos que estão online e que contem esse nome do projeto, mas infelizmente nenhuma página que tente explicar o que foi isso.

O projeto já existia pelo menos desde 1990, eu ainda nem fotografava. Eduardo Castanho que dirigia o laboratório de fotografia do MIS, assistido por Fausto Chermont, iniciou o projeto que nada mais era do que uma série de reuniões, quinzenais, depois semanais, que conduziam um grupo de fotógrafos na produção de seus trabalhos pessoais.

A simplicidade da fórmula era muito interessante. O fato é que as reuniões frequentes impunham um ritmo no trabalho e isso ensinava disciplina a mim. O grupo era composto por figura interessantíssimas: o Manlio fotografava grupos de dança, fazia múltiplas exposições e para não ter que mostrar as fotos para as dançarinas dizia que usava um filme que transfigurava as pessoas; o Ozires começava ali a recortar a cara das pessoas; um cara fotografava os velhinhos que jogavam gateball no Ibirapuera; a Marcela fazia umas coisas muito delicadas e pequenas, retratos íntimos; o Paulo e a Dida se juntaram ali, ele trazia uma bagagem do NP, assustava os passageiros do metrô com um flash, ela povoava a própria casa com personagens; o Gustavo, que me levou lá, passeava a cidade com uma 6×6 roubando a alma dos desatentos; a Fátima ficou curiosa por um grupo de palafitas na entrada do Guarujá e lá entrou para desvendar como eles vivem ali; do Ricardo eu lembro de uma foto, fora de foco, pós-bar, noturna e do causo que ele contou junto.

E tinha dias em que o papo fluia e tinha dias que não. Como a vida. Um dia em especial foi chato demais: alguém puxou o papo conservação e preservação e aquilo foi tomando conta, ninguém chegou a mostrar trabalhos na mesa aquele dia, terrível. No entanto, de todas as conversas foi a que ficou guardada, como proteger o próprio trabalho. Num outro dia o Castanho mostrou dois trípticos dele. E explicou a construção deles, foi muito elucidativo. Num dia o Steve Hart estava no MIS para montar a própria exposição, tivemos um papo com ele sobre o Brooklyn Family Album, ali nasceu a idéia das fotos de Osasco, anos mais tarde. Um suiço veio falar do trabalho dele de fotografar manifestações, um outro veio falar de fotos de paisagem feitas com ajuda de um nível de bolha.

Com as eleições no fim de 94 todo o MIS foi demitido e foi o fim do projeto. Um encerramento nada antecipado, nada agradável. O que ficou do que aconteceu lá? Tudo. E de tudo, o resto são só desdobramentos.