Lab da Folha

A presença da Colex no meio do estúdio e o cheiro dentro dela me fizeram pensar em alguns eventos e personagens do passado.

Entre 1997 e 2000 eu passei um bom tempo na sala da Fotografia da Folha de S. Paulo. Eu fazia uns frilas e volta e meia me via ali esperando os filmes revelarem, esperando cópias, esse tipo de coisa. O lugar era sempre agitado. Ali conheci dois personagens em especial, o Vailton e a Luciana.

A Luciana operava um pequeno minilab (só impressora) que transformava os negativos 35mm usados pelo pessoal em cópias 15x21cm bem rudimentares. O porta-negativo havia sido recortado com uma lima para mostrar todo o conteúdo do negativo na cópia. Luciana se esmerava controlando densidade, amarelo, magenta e cian das cópias. A lente do minilab não cooperava e as fotos sempre tinham um foco que deixava a desejar, eu me sentia o único a perceber aquilo, então nunca falava nada.

Luciana era conhecida por ali pelo seu linguajar único e peculiar, que enquanto parecia uma barreira para se chegar a ela, logo se mostrava uma maneira diferente de conhecer o mundo. Ela sentada ali na máquina, voltada para a janela do lab que dava para a sala, observava a ida e a vinda de fotógrafos e mais fotógrafos, todos com suas bolsas e egos “com ou sem catupiry”.

Vailton rodava todo o setor, supervisionava tudo. Trazia consigo a experiência de quem já havia visto a passagem do p&b para o cor e por ai vai. Com ele se conseguia filme, ou seja, você trazia 6 filmes usados na pauta e entregava para ele, ele já te dava 6 virgens para a próxima. Sem filme exposto, sem filme virgem.

O lab da Folha tinha uma parte de clara que fazia a forma de um “U”, na sala de entrada Luciana e sua impressora, a saída da processadora de papel em folha, os escaninhos, no meio o estúdio e escondido nos fundos o lab de filmes.

No interior do “U” ficava um lab escuro com dois Leitz Focomat 35mm. De lá saiam pela processadora as cópias mais refinadas que a Folha Press, por exemplo, usava para vender imagens e também todos os contatos em papel 24x30cm que os jornais todos usavam para editar e arquivar suas fotos. Eu ficava de papo com a Luciana olhando o que saia pela processadora e caia na cesta. Seu som era interessante e de vez em quando não saia nada e logo alguém percebia que um papel tinha ficado preso lá no meio. Um contato importante era aguardado com ansiedade. Eram muitos contatos e no fim do dia as caixas de 24×30 vazias se empilhavam. Eu levava as caixas vazias embora e as usava para guardar os meus printfiles com meus filmes p&b revelados em casa.

Um dia, ali mesmo, ao lado do minilab, perguntei ao Vailton o que eram uma série de envelopes amarelos antigos sob a bancada que dava para os scanners do fundo da sala. Eram papéis fibra p&b do passado da Folha, papéis para ampliações 30x40cm que eram feitas ali no lab, envelhecendo ali no chão. Ganhei esses papéis de presente e com eles fiz a exposição de Osasco no CCSP (1998).

CCSPosasco02

Certa vez pedi uma pesquisa no arquivo atrás de todas as pautas que eu tinha feito por lá. Juntei uns filmes escolhidos e parti para aquele mesmo lab cor com uma caixa de papel que comprei no centro, passei uma manhã de domingo tranquilo no lab da Folha ampliando meu próprio portfolio. Vailton me mostrou o básico do lab cor e eu me virei pela primeira vez com o cheiro da processadora e o calor da chapa metálica onde se apoia o papel na hora de colocá-lo lá. As cópias saiam secas e os olhos deles dois serviam de balizas para encontrar o tom correto e as dicas de quantos pontos de magenta deveriam entrar e quantos cian deveriam sair.

carreteiro

zoo

ginasta

Lab cor é uma experiência muito prazeirosa com uma boa processadora fazendo todo o trabalho difícil. Essa vez na Folha foi a primeira, depois tive essa oportunidade uma vez no Canadá, num desses labs que se aluga por hora e depois no Senac algumas vezes nos idos de 2004 e 2005. A Colex de Uberlândia promete momentos de nostalgia num futuro próximo.

Laços de família fotográficos

Minha mãe encontrou essa foto do meu bisavô. Ele fazia o tipo atlético, foi goleiro de futebol. A curiosidade dessa imagem é que ele tem a sua câmara fotográfica pendurada no pescoço. Dentro do estojo de couro.

Anos se passaram e um dia na casa da minha tia avó eu encontrei a tal câmara. Desde então quem cuida dela sou eu.

Em 1994 eu fui ao Rio várias vezes, por questões de família, levando a câmara, que é bem pequena quando fechada. Fotografei na Dutra, em Copacabana, por onde eu passei. Por onde eu sempre passo, ainda. Essa foto aqui é da minha avó, feita com a câmara que aparece na foto de cima, junto as plantas que ela tanto cuidava, como eu ainda cuido da câmara do meu bisavô.

Roraima, rumo norte

Uma planície enorme. No horizonte recortes no céu. Os carcarás curtem pousar no meio da estrada, o carro vai chegando e podemos assistir um vôo lindo. Para Amajari pegamos a BR-174, sentido Norte. A bússola marca N o tempo todo. Dia nublado. Ao lado direito da rodovia um morro invade as nuvens que estão baixas. Chove agora. Esse lado de Roraima é parecido com o cerrado, mas eles dizem lavrado. Km 572. Ao longo da estrada está a linha que traz eletricidade da Venezuela para Boa Vista. Gilvan acompanha Bon Jovi num cover de Bridge Over Troubled Water. Quem dirige é Arquimedes. Uma reta só. Campos de arroz. Uma raposa morta no acostamento depois do Urariquera. Buritizais entregam de longe para onde corre e se esconde a água da chuva. No Km 598 as árvores começam a parecer mais altas. Fica tudo mais verde, apesar ainda retorcidos os troncos. Ciclistas. Com a bússola apontando Oesta agora, viramos na RR-203. Arquimedes aponta o platô no horizonte. Uma silhueta azulada linda e sem texturas. Uma cruz na beira do asfalto. O vôo de um carcará só. As árvores somem. Um tuiuiu. A ruína de um bar. Um post sem foto.

Into the wild

Não sei precisar quando foi que eu chorei tanto numa sala de cinema quanto hoje. O filme era Into the Wild. É verdade que essa semana tinha me deixado sensível. Foi o post da Wicca de 19.03, as idas e vindas a respeito do consumo consciente que algumas pessoas acham que é uma solução para algo que eles mesmos acham que é o problema, o puro e simples descaso nas relações cotidianas.

Também não sei precisar o que exatamento no filme me atingiu com tanta intensidade. Não quero falar muito, não quero estragar o filme para ninguém. Acho que é a noção de desprendimento material, essa liberdade de que o filme trata. O filme é pontuado por despedidas, mas não foram elas que trouxeram as lágrimas à tona. Foram alguns diálogos cheios de simplicidade. Foi a fuga desesperada das distorções nos relacionamentos.

“If you are not having dinner, I can sit with you all night long.”

O filme me fala do Zen também. Que é associado à viagem, simbólicamente. O caminho a ser percorrido. Essa associação pode ser deixada de lado, pode-se exercitar o Zen percorrendo um caminho a lugares próximos, cotidianos talvez. Para o Zen não importa o destino final e sim o próprio caminho. E a clareza para com ele.

Realidade, verdade, mentira, amor, carinho. Família. Tudo pode ser tão simples, esse filme é tão claro a esse respeito. Difícil impedir a emoção de fluir. E no fim do filme um sorriso te pergunta: está você tão cego para tudo isso?

Ele é um fotógrafo, quem diria.

O que é fotografia?

Comecei a escrever mais uma coluna e senti falta de uma ajuda em
algumas questões, enviei o texto a um amigo, o fotógrafo e professor
Luish Coelho, em busca de uma discussão. O que se segue é nossa
correspondência:

Isso seria uma coluna para o Fotosite – pretencioso?
O que é fotografia?

Estava preparando uma aula e sai a cata de textos para mostrar aos
alunos, coisas aparentemente simples como os conceitos de fotografia,
jornalismo e fotojornalismo que provocassem discussão em sala. A
Wikipedia é sempre razoável para grandes temas, que acabam sendo
editados e reeditados várias vezes, já com fotojornalismo, por
exemplo, ainda é confusa. Alguém blogou o conceito de Jorge Pedro de
Souza para fotojornalismo e isso salvou o dia, ele é português e
escreveu “Uma História Crítica do Fotojornalismo Ocidental”. O Masao o
citou em uma de suas colunas mais antigas, sobre ética no jornalismo.
De qualquer maneira fiquei insatisfeito com o conceito que eu
encontrei buscando “O que é fotografia”, talvez por ter encontrado um
tão bom para fotojornalismo. Muita etimologia, pouca ontologia na
Wikipedia. Acho o conceito bastante para disparar uma discussão, mas
será bastante para descrever a Fotografia numa enciclopédia?

O conceito apresentado pela Wikipedia para fotografia no dia 31 de
janeiro de 2008 era o seguinte:
“Fotografia é uma técnica de gravação por meios mecânicos e químicos
ou digitais, de uma imagem numa camada de material sensível à
exposição luminosa, designada como o seu suporte.
A palavra deriva das palavras gregas φως [fós] (“luz”), e γραφις
[grafis] (“estilo”, “pincel”) ou γραφη grafê, significando “desenhar
com luz” ou “representação por meio de linhas”, “desenhar”.”

Já imagino Flusser discordando, que dirá o pessoal do MRFR19 ou do
FVD. Vilém Flusser escreveu “A Filosofia da Caixa Preta – Ensaios para
uma futura filosofia da fotografia”. Começa que o conceito proposto
pela Wikipedia explica mais como fazer e fala pouco do resultado, das
tais fotografias. Cismei que na própria etimologia apresentada há a
idéia de representação, mas no conceito da Wikipedia a tal
representação talvez exista implícita dentro da palavra imagem, mas
não está explícita.

Busquei ajuda nos conceitos presentes nesse livro do Flusser. O
primeiro capítulo começa com a seguinte frase: “Imagens são
superfícies que pretendem representar algo”. Sucinto, simples,
abrangente. O segundo capítulo, assim: “A imagem técnica é a imagem
produzida por aparelho”. O terceiro capítulo trata de explicar como é
o tal aparelho fotográfico, que é algo mais abrangente do que câmara
fotográfica. Existem outros aparelhos, como vídeo ou web.

Bolar um conceito básico de fotografia fica fácil partindo desses
textos: Fotografia é um tipo de imagem técnica. Continua abrangente e
para que se torne mais simples talvez pudéssemos adicionar a ele duas
explicações internas: Fotografia é um tipo de superfície, que pretende
representar algo, produzida por aparelho.

Resta uma pergunta dentro desse conceito: que tipo de imagem? Imagino
a fotografia em expansão nesse momento, tentar responder a essa
pergunta apressadamente é tentar limitar o que é fotografia e o que
não é. É bom lembrarmos que vivemos num mundo em que se faz vídeo de
foto e foto de vídeo.

A que Luish Coelho respondeu da seguinte maneira:

“Esta pergunta me parece uma daquelas perguntas mutantes, para a qual
sempre teremos uma resposta diferente de acordo com a época em que a
fizermos.

Hoje, o que é fotografia?
A tentativa de resposta me parece pertinente para uma coluna, um site
enciclopedico e até uma dissertação de mestrado.

Achei a coluna boa, pretensão seria achar que a pergunta já está respondida.

Fiquei atento ao parágrafo em que você diz:
>>>Bolar um conceito básico de fotografia fica fácil…

Nele, creio que dizer que é um tipo de imagem técnica é bastante
simples e quase suficiente (se o leitor se embarafustar pelo conceito
de imagem técnica adentro). No entanto, dizer que é um tipo de
superfície… humm, não sei não, muito preso ao papel, não acha?
Flusser diz que é uma superfície e ponto. Um tipo de superfície me
parece mais complicado que um tipo de imagem técnica.

A idéia de que imagens pretendem representar algo tambem é polêmica, não acha?
Ajudei?”

Devolvi assim:

> não sei não, muito preso ao papel, nao acha?

Pelo contrário, a palavra superfície ao meu ver consegue juntar tanto
o papel quando o tubo de raios catódicos em um único conceito e isso
eu acho que é sensacional no Flusser. Porque graças a isso quase todos
os aparelhos que surgiram depois do livro continuavam sendo incluídos
nele, porque de um modo ou de outro eles eram superfícies, a TV, o
LCD, a parede, uma cortina de fumaça onde se projeta algo, não
importa, são superfícies para a física porque refletem a luz e isso as
inclui nesse conceito.

> parece mais complicado que um tipo de imagem tecnica.

Pretendia usar a palavra tipo para dizer que existem outros tipos de
imagem técnica, dentre eles o vídeo.

> a ideia de que imagens pretendem representar algo tambem e’ polemica, não acha?

Acho que pode haver muita discussão se os autores chegaram às suas
imagens através do acaso ou da pretensão. No entanto, o resultado
final, a imagem, para mim, sempre tenta representar algo,
independentemente da intenção do autor. Seja apenas uma superfície
branca, pode gerar uma boa discussão sobre a crise de conteúdo, assim
comprovando que ela representou algo para algum ser humano em um dado
momento, loucura minha?

Trinta anos depois, as fotos dos meus bisavós se reencontram com o ar seco. À medida que perdem a umidade, se retorcem tentando se esconder da luz.


Septicismo

A vida é sempre a mesma e sempre o mesmo
O homem que a sonha nova e singular
E vai vivendo, e vai sonhando a esmo,
Iludindo a si mesmo
Pela doce mentira de sonhar

O destino não volta, e sempre adiante
Os homens leva para a mesma dor!
Mas em meio à miséria circundante,
O homem prossegue adiante,
Para o clarão do uimérico amor.
Nada perturba a marcha do universo.
Inútil ilusão a de viver.
Mas canta o poeta, e quer conter num verso
Tôda a luz do universo
E a grandeza dinâmica do ser.

Septicismo é uma poesia inédita da minha bisavó Anna Amélia.